Quais os impactos da morte de Ebrahim Raisi?
Sua eleição, em 2021, representou o enfraquecimento da presidência diante do líder supremo, um processo que deve ter continuidade agora
No domingo 19, enquanto as equipes de busca procuravam os destroços do helicóptero que carregava Ebrahim Raisi, presidente do Irã, o líder supremo do país, Ali Khamenei, fez um discurso com o objetivo de acalmar seus simpatizantes.
Imediatamente após pedir orações para o retorno de Raisi e das outras autoridades desaparecidas na província do Azerbaijão Oriental, Khamenei disse a seus seguidores para “terem certeza” de que não haveria “perturbações nos assuntos do país.”
O comentário era um sinal para preparar a população para morte de Raisi (confirmada no dia seguinte), mas tinha o intuito, também, de deixar claro que o projeto político de fechamento do regime, levado a cabo há alguns anos, continuará a ser avançado.
Khamenei x Presidência da República
Khamenei é o líder supremo do Irã desde 1989, quando assumiu a vaga aberta pela morte de Ruhollah Khomeini, o líder da revolução de 1979. Nos primeiros anos, era uma figura frágil em termos de poder político, carisma e credenciais religiosas, um quadro que permitiu à presidência da República se assentar como um importante bastião de poder.
O sistema político iraniano é híbrido. Ele mistura características republicanas a teocráticas, sendo que a principal manifestação das primeiras são as eleições presidenciais periódicas. Entre 1993 e 2017 – apesar das inúmeras restrições impostas a diversos atores políticos e das denúncias de fraudes – os pleitos eram competitivos.
A disputa estava circunscrita às figuras que aceitavam a proeminência clerical sobre a vida do país, mas ela existia. O resultado das eleições, deste modo, poderia ensejar mudanças econômicas, sociais, políticas e, em menor de medida, de política externa.
Assim, ao longo de duas décadas, os presidentes Akbar Hashemi Rafsanjani (1989-1997), Mohammad Khatami (1997-2005), Mahmoud Ahmadinejad (2005-2013) e Hassan Rouhani (2013-2021) foram figuras proeminentes. Todos, em maior ou menor medida, se envolveram em disputas com Khamenei.
Republicanos x Teocratas
Apesar da força relativa da presidência no Irã, Khamenei foi capaz, nas últimas décadas, de entrincheirar seu poder e influência no regime iraniano, ampliando suas redes de apadrinhamento, nas quais clérigos aliados, como era Ebrahim Raisi, e os militares da Guarda Revolucionária têm um papel de destaque.
A partir dos intensos protestos ocorridos em 2009, as facções políticas de tendência teocrática, junto da Guarda Revolucionária, se engajaram em uma campanha de expurgo dentro do establishment do regime iraniano.
Na primeira leva, os setores republicanos com origem na esquerda revolucionária foram extirpados da política. Um a um, os chamados reformistas perderam cargos, a liberdade e sua capacidade de influenciar os rumos do país.
Mais recentemente, a direita republicana vem experimentando o mesmo tipo de pressão. Este processo teve como ponto alto justamente o pleito de junho de 2021.
Ali, pela primeira vez desde de 1993, as eleições presidenciais no Irã foram disputadas com o vencedor já conhecido de antemão: Ebrahim Raisi, escolhido pessoalmente por Khamenei como seu candidato. Não à toa, foi o pleito com a menor taxa de comparecimento da história da República Islâmica: apenas 48% dos eleitores foram votar, 25 pontos percentuais a menos do que o registrado em 2017.
O expurgo das facções republicanas não é um ataque motivado somente pela visão fundamentalista dos teocratas a respeito da relação entre política e religião. Ao avançar contra esses setores, o bloco teocrata está protegendo o regime como ele é – ou seja, está atuando para manter um sistema que garante privilégios políticos e econômicos a seus beneficiários.
A estratégia para bloquear os republicanos - que poderiam, eventualmente, levar a mudanças no regime – foi arriscada. Khamenei e seus aliados optaram por abrir mão da porção da legitimidade do regime que era calcada no voto popular. Mais do que nunca, o Irã tem hoje uma grande parte de sua sociedade rebelada contra o regime, em um estado de permanente ebulição.
Os desafios da sucessão
A eleição sucessória de Ebrahim Raisi representa, deste modo, um duplo desafio. Em primeiro lugar, o regime precisará, novamente, decidir se aprofundará este processo de expurgo, mais uma vez desqualificando em massa candidatos com uma visão republicana ou mesmo os conservadores não totalmente alinhados a Khamenei e à Guarda Revolucionária, como ocorreu em 2017.
Uma eventual autorização para que um candidato não-alinhado a Khamenei entre na disputa pode ser entendida pela população como uma reabertura do processo político. Isso ensejaria desfechos incertos. Assim, não parece que esta será a opção.
O segundo problema é o fato de que a face visível do processo terá de ser trocada na ausência de Raisi. Sem ele, o regime terá de selecionar uma nova figura para dar continuidade ao fechamento do regime e à subjugação da presidência em favor do líder supremo.
Este processo pode envolver tensões dentro dos blocos de apoio a Khamenei: os guardas revolucionários e os clérigos. Apesar de, nos últimos anos, estarem muito alinhados na campanha contra os republicanos, esses grupos possuem subdivisões e mesmo entrelaçamentos entre eles.
Agrava este cenário o fato de que a eleição pode ser entendida não apenas como uma disputa pela sucessão de Raisi como do próprio Khamenei, que é um idoso de 85 anos. Figura muito próxima do líder supremo, o presidente morto era cotado como herdeiro do cargo máximo da política iraniana.
Se o seu substituto for também um clérigo proeminente, seu nome certamente aparecerá na lista de prováveis líderes supremos. Se for uma figura da Guarda Revolucionária, pode fortalecer a especulação de que, em caso de morte de Khamenei, os militares estariam posicionados para assumir o poder, alijando as lideranças religiosas.
O líder supremo, como ele próprio disse no domingo 19, tentará “ter certeza” de que tudo isso não vai provocar “perturbações nos assuntos do país.” As próximas semanas vão demonstrar sua capacidade de cumprir a promessa. As eleições devem ocorrer, no máximo, na primeira semana de julho.