Desastre na Líbia simboliza o fracasso de uma governança autoritária e incapaz
A passagem da tempestade Daniel deixou milhares de mortos e desabrigados na cidade de Derna
O resumo do texto, em três pontos:
Desde 2014, a Líbia está dividida e conta com dois governos rivais;
O impasse é sustentado também por potências estrangeiras, que buscam proteger seus interesses;
Décadas de negligência ajudam a explicar o rompimento das barragens que agravou a catástrofe em Derna.
Quase três semanas após a passagem da tempestade Daniel pelo Mediterrâneo, mensurar o tamanho do estrago deixado para trás na Líbia ainda é um desafio. Múltiplas cidades do país foram atingidas, mas nada se parece com o que ocorreu em Derna.
Ali, pelo menos 4,2 mil pessoas morreram, 8,5 mil estão desaparecidas e cerca de 16 mil, desabrigadas. A infra-estrutura foi devastada. Ruas, estradas, tubulações de água e de esgoto foram destruídas, centenas de edificações estão arrasadas, pontes que conectavam os dois lados da cidade, inutilizadas, e cerca de metade das instalações hospitalares sofreram danos.
A população enterrou muitos dos próprios mortos em valas comuns, parte de um drama que está longe de acabar. Prédios inteiros e automóveis foram arrastados para o mar. Segundo mergulhadores que participam do trabalho de resgate, foi possível ver carros com famílias inteiras dentro deles, provavelmente atingidas pela enxurrada quando tentavam escapar.
Não há morador de Derna que, se não perdeu seus próprios entes queridos, não conheça alguém que viu parte da família perecer. A magnitude da tragédia se prolongará no futuro, na reconstrução das vidas dos sobreviventes e da própria cidade.
Além dos desafios econômicos e psicológicos deste processo, os moradores de Derna podem ter de enfrentar o descaso de uma elite política venal, que, com o auxílio de potências estrangeiras, há anos mantém o país em uma guerra civil com o objetivo de controlar as riquezas da Líbia.
Um histórico de negligência
O quadro político líbio contribuiu diretamente para que Derna se parecesse hoje com um cenário apocalíptico. A catástrofe só atingiu tal proporção por conta da destruição de duas barragens erguidas justamente para proteger a cidade de enchentes. O histórico de como essas estruturas foram tratadas, detalhado pelo Wall Street Journal, é revelador do descaso das elites políticas em relação à sociedade.
Derna está na porção leste da costa da Líbia, no encontro entre o Mediterrâneo e o vale fluvial Wadi Derna. A região é propícia para alagamentos e, por isso, as barragens foram erguidas, na década de 1970.
Em 2003, ainda durante a ditadura de Muamar Qadhafi, engenheiros suíços concluíram que as instalações precisavam de reparos e recomendaram a construção de uma terceira barragem. A obra não foi concluída. As empresas contratadas para realizar o serviço deixaram o país em 2011, em meio aos confrontos iniciados pela tentativa de Qadhafi de se perpetuar no poder em meio à Primavera Árabe.
Com a queda do ditador, o país foi tomado por uma intensa instabilidade, marcada pela proliferação de inúmeras milícias armadas. Em 2014, isso resultou no início da guerra civil que, até hoje, divide a Líbia entre dois governos. Neste ponto, o dinheiro alocado para o reparo das barragens já havia desaparecido e Derna se encontrava controlada por militantes ligados ao Estado Islâmico.
Em 2021, os dois lados da guerra civil se aproximaram graças à mediação internacional do conflito, mas naquele período o ministério responsável se encontrava paralisado, em meio a uma disputa entre o ministro e seu vice, um líder miliciano.
As barragens, assim, permaneceram como estavam em 2003, apesar dos contínuos avisos sobre sua situação precária. Sem manutenção, elas se romperam em 11 de setembro e destruíram parte da cidade.
Mais de uma década de impasse político
Uma semana após a tragédia, a população de Derna realizou protestos contra as autoridades líbias, exigindo punição aos responsáveis. Rapidamente, ficou evidente o caráter autoritário do governo que comanda o leste do país e, portanto, Derna: a internet e as redes de celular foram derrubadas, jornalistas internacionais foram removidos da cidade e ativistas e manifestantes, presos.
Parte das medidas foi posteriormente revertida, mas a reação não foi uma surpresa. A região leste da Líbia tem como primeiro-ministro Osama Hamad, mas a força real ali é o marechal Khalifa Haftar. Ex-homem forte nas tropas de Qadhafi, Haftar desertou nos anos 1990 e se estabeleceu nos Estados Unidos, país que deu a ele a cidadania e que recebeu dele muitas informações de inteligência.
Atualmente, Haftar comanda as Forças Armadas Árabes Líbias (LAAF na sigla em inglês), um conglomerado de milícias que orbitam ao redor de sua figura. A LAAF é sustentada pelo Egito, pelos Emirados Árabes Unidos e pela Rússia (onde Haftar esteve na semana passada).
O marechal tentou tomar o poder à força em três ocasiões: em 2014, em 2019 e 2022. Na ação iniciada em 2019, seus homens chegaram às portas de Trípoli, mas foram rechaçados por uma intervenção militar da Turquia, apoiada pelo Catar.
O principal adversário de Haftar é o Governo de União Nacional (GNU na sigla em inglês), baseado na capital e atualmente liderado pelo primeiro-ministro Abdul Hamid al-Dabaib. O GNU é reconhecido pelas Nações Unidas como governo legítimo da Líbia, mas seus reais sustentáculos são a Turquia e o Catar.
A Europa, que assim como os EUA abandonou os líbios à própria sorte após a derrubada de Qhadafi, não tem uma política unificada para a Líbia. Em larga medida, isso ocorre por conta das diferenças entre a Itália e a França. Paris oficialmente apoia o GNU, mas clandestinamente ajudou, inclusive militarmente, a sustentar e legitimar Haftar. Roma, por sua vez, é uma apoiadora importante do GNU.
A rivalidade França x Itália é demarcada pela atuação de suas petrolíferas. Enquanto a italiana ENI investe na região oeste da Líbia, controlada pelo GNU, a francesa Total tem muitos negócios no leste do país, dominado por Haftar. Igualmente, a Turquia também tem interesse na exploração de petróleo e gás no Mediterrâneo, o que explica seu interesse na manutenção da legitimidade do GNU.
Diante deste cenário geopolítico, não é de espantar que o processo político na Líbia, mesmo com mediação internacional, não avance. As negociações são concentradas em discussões a respeito de como e quando promover uma eleição ou um governo de conciliação nacional, mas rotineiramente os interesses dos atores locais e de seus patrocinadores estrangeiros fazem os acordos descarrilarem.
Também não é coincidência que, desses diálogos, não fazem parte discussões sobre como desarmar as inúmeras milícias do país, muitas delas responsáveis por violações de direitos humanos e, cada vez mais, donas de um poder político crescente. São essas milícias que, na prática, avançam os interesses dos poderosos.
Punições aos culpados?
Apesar da repressão em Derna e do impasse político, tem sido possível para governos e entidades estrangeiras prestarem auxílio aos afetados pela tragédia. A assistência humanitária tem chegado ao país e aliviado parte do sofrimento ao qual a cidade foi submetida.
É improvável, porém, que a cooperação momentânea entre os dois governos sirva como plataforma para um acordo político mais amplo. A julgar pelo histórico recente, é verossímil que um ou dos dois lados esperem o fim da comoção internacional para desviar fundos ou para disputar a liderança da reconstrução.
Também é difícil vislumbrar um cenário de punições aos reais culpados. Nos últimos dias, oito pessoas foram presas, entre elas o prefeito de Derna e funcionários dos departamentos de recursos hídricos e barragens. O perfil dessas pessoas evidenciou a possibilidade de que a investigação vai mirar figuras de pouca proeminência, deixando de lado integrantes das elites políticas.
Boa parte da população, porém, segue indignada com a governança autoritária e incompetente à qual é submetida. Em 2022, os dois governos e as milícias que lhes dão suporte foram alvo de manifestações contra o impasse político e a rápida deterioração das condições de vida. Trata-se de um quadro semelhante ao de 2011. O regime Qhadafi foi derrubado, mas a busca da população por dignidade agora esbarra em outras lideranças.