Crônicas do Irã (2023), de Ali Asgari e Alireza Khatami
Com algum humor, o filme expõe a arbitrariedade de um regime que impõe humilhações cotidianas a sua população
Em 16 de setembro de 2022, Mahsa Amini, uma iraniana de origem curda de 22 anos, foi declarada morta pelo hospital Kasra, em Teerã, onde estava internada. Ela chegou ao local após ter sido espancada pela polícia religiosa durante sua detenção, motivada pela não utilização do véu conforme as diretrizes oficiais.
A morte de Mahsa Amini, ocorrida em meio a um agravamento da repressão do regime contra as mulheres, foi o estopim para os maiores e mais amplos protestos na história recente do Irã.
No auge das manifestações, os cineastas Alireza Khatami e Ali Asgari pararam por dois meses as filmagens do longa que dirigiam juntos. Acossado por uma mobilização sem precedentes, o regime reagira com uma intensa brutalidade que motivou mais atos e mais repressão. “Foi muito triste ver a profecia do filme chegando às ruas”, disse Khatami à AFP.
A previsão à qual Khatami se refere eram os abusos cometidos pelo regime contra a população. A arbitrariedade que emana dos centros de poder em Teerã é o tema de Crônicas do Irã, filme de Khatami e Asgari.
Nele, o autoritarismo não é exposto por meio de sua face mais conhecida, a da violência física, mas sim através do olhar de cidadãos comuns que enfrentam humilhações cotidianas para realizar as tarefas mais simples do dia a dia.
Um homem tenta registrar o filho com um nome estrangeiro. Uma garota precisa começar a usar as vestes que cobrem seu corpo. Uma mulher participa de uma entrevista de emprego. Uma idosa tentar recuperar o cachorro que lhe foi tomado. Todos se deparam com situações absurdas e abusos de poder normalizados graças a uma ordem autoritária e baseada em uma interpretação específica do Islã. Para as mulheres, a situação quase sempre é pior.
“Muitos diálogos dentro do nosso trabalho estão enraizados em experiências genuínas, tornando a narrativa não apenas uma obra de ficção, mas um reflexo das nossas realidades”, disse Khatami à revista Variety. Um dos personagens, um diretor de cinema que tenta aprovar o roteiro de um filme no Ministério da Cultura, foi inspirado em uma situação que o próprio Khatami enfrentou.
Crônicas do Irã é composto de nove esquetes, um formato inspirado nos gazéis, estilo de poesia muito presente na literatura persa – o título original do filme é o mesmo de um poema de Forough Farrokhzad – mas também foi montado dessa forma para diminuir o assédio dos censores.
O formato rendeu ao filme a exibição, em 2023, na seção Un Certain Regard do festival de Cannes, que privilegia longas produzidos em estilos pouco usuais.
Chama atenção o fato de que todos os integrantes ou beneficiários do regime – burocratas ou pessoas em posições de poder – aparecem apenas por meio de suas vozes. São figuras anônimas para o espectador, o que acaba por trazer uma unidade às nove histórias aparentemente sem conexão entre si.
“Queríamos mostrar indivíduos e celebrar pessoas que resistem e que estão em constante negociação com o poder”, disse Khatami à RFI. “Bastou uma voz do outro lado para criar este sentimento de um ‘Big Brother’ que tenta gerir até ao mais ínfimo pormenor as coisas mais básicas da vida dos seus cidadãos”, afirmou. Segundo Ali Asgari, “era importante não vermos o rosto”, pois os interlocutores dos personagens agem “como se fossem uma única pessoa, um único sistema”.
A coragem dos jovens
O filme escapou da censura prévia, mas um de seus idealizadores, não. Após a exibição de Crônicas do Irã em Cannes, Ali Asgari teve o passaporte confiscado, foi proibido de deixar o Irã e de filmar.
Khatami, que vive fora do Irã há anos, e Asgari estão longe de ser os únicos diretores na mira do regime. Em maio de 2024, o celebrado Mohammad Rasoulof foi condenado a 8 anos de prisão, chicotadas e multa, mas conseguiu fugir do país.
A onda de protestos originada com a morte de Mahsa Amini foi inédita por suas proporções, mas ela se encaixa em uma sequência de explosões anti-regime que teve início em 2017 e não foi completamente contida. Das classes médias em Teerã até as cidades na zona rural, o regime iraniano é, cada vez mais, percebido como ilegítimo por grandes contingentes de sua população.
Por outro lado, sua penetração na sociedade e o tamanho das redes de proteção criadas nas últimas décadas não indicam que ele está perto do fim. Há uma diferença geracional, porém, que, na análise de Alireza Khatami, torna a situação política do Irã bastante fluída.
“Minha geração cresceu com a guerra (Irã-Iraque, entre 1980 e 1988). Oito anos de guerra. Isso criou um sentimento de medo dentro de nós. A nova geração nunca viu esta guerra. A nova geração tem demandas diferentes. Os pais deles são da minha geração. E éramos pais diferentes. Tentamos não transmitir medo a eles. Hoje, é uma geração corajosa e destemida. E ela está ciente do custo que deve pagar. E eles estão prontos para pagar por isso. O verdadeiro poder reside na sua coragem.”
Veja o trailer de Crônicas do Irã:
📽️ Onde assistir: cinema, São Paulo (junho/2024)
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Fiquei muito interessada em assistir! Espero que em breve esteja disponível em algum serviço de streaming :)